Baden Powell e a negação do candomblé
O Rio de Janeiro se converteu no genuíno túmulo do samba. O violonista e compositor Baden Powell foi enterrado na manhã fria de 27 de setembro de 2000, em dia pouco usual para os padrões cariocas. Naquele instant, eu sobrevoava o cemitério São João Batista, e aterrissei na Cidade Maravilhosa ao contrário do “Samba do Avião”, tantas vezes interpretado pelo violonista. E vamos nós, como quem chegasse tarde ao funeral do samba.
Baden havia morrido na madrugada do dia anterior, terca-feira, de falênccia múltipla dos órgãos, aos 63 anos. Baden Powell, autor do “Samba da Bencão” e muitos outros clássicos, desceu à sepultura. As datas de nascimento e morte, assim juntadas (1937-2000), soam como cifras de quem morre rompendo o milênio, parece morte de faraó, muito longa, muito hierática. O nome do violonista poderia figurar em uma pirâmide, caso a MPB tivesse seu Vale dos Reis.
Com uma carreira longa e pouca idade, ele conseguiu formar uma obra de peso: mais de 50 discos gravados (o primeiro é de 1956) e 255 composicões. Baden garantiu a qualidade da música brasileira porque soube unir os registros erudito e popular em uma linguagem violinística renovadora. Os necrológios foram muito elogiosos, mas agora vem o momento de examinar o legado do autor edo instrumentista.
O que parece claro é que a fonte de inspiracão de Baden se esvaiu ainda em vida. Ele renegou suas obras passadas por conterem material colhido diretamente na umbanda e no candomblé. Parou de tocar música de feiticaria e tratou de, infelizmente, domesticar seu violão outrora incendiários nos ponteios, nos arpejos de dinâmicas inquietantes, no dedilhado encantadores pela medida imprecisão, na armacão dos acordes simples que soavam esotéricos porque nasciam do modalismo da tradicão africana. Baden matou a arte antes de ir embora. Converteu-se ao messianismo evangélico e negou o hedonismo original, que era sua fonte.
O pagão virou cristão, o som virou um intervalo entre dois silêncios. O momento de mutacão de sua carreira aconteceu com o encontro com Vinicius de Moraes. O poetinha havia perdido o parcerio Tom e precisava de outro músico para se apoiar. Corria o ano de 1962 e Baden caiu como uma mão providencial. Os dois fizeram a série chamda “afro-sambas”. O termo confundiu muita gente, que protestou, argumentando que todo samba era afro, então por que denonimar os sambas de afros? O fato é que tanto Baden como Vinicius eram praticantes de candomblé e o termo “afro” queria expressar a temática religiosa e a origem modal das cancões, inspiradas diretamente nos pontos de candomblé.
Músicas do quilate de “Cancão de Xangô”, “Canto de Ossanha” e “Iemanjá” estabeleceram um modelo diferente para o samba culto, até então dominado pelo estilo bossa-novista do violão de João Gilberto. O violão de Baden era ao mesmo tempo mais primal e mais clássico; era mais extrovertido e franco; dizia respeito a raízes populares, mas se estruturava nas licões de Tarrega e Villa-Lobos. Os sambas de Baden não eram feitos de blocos de acordes minimalmente variantes, mas de acordes “soltos”, modais, que permitiam o bailado dos dedos sobre as cordas e trastes do violão. Eles representam um retorno ao primitivismo aparente, uma volta ao violão de Dorival Caymmi. Aparente porque também Caymmi reinventou o violão brasileiro ouvindo jazz e os acordes de sextas e sétimas.
Baden inventou melodias bonitas sobre um rigoroso esquema virtuosístico do violão clássico. Seus sambas-afros são, na realidade, Lieder, cancões eruditas, nutridas na escritura ocidental para a melodia do violão.A leveza de suas músicas fica por conta dos versos de Vinicius, que tão bem se casam com elas, num permanente combate de contrastes. As duas dezenas de sambas-afros de Baden formam seu legado para a posteridade. São pecas intelectualizadas, virtuosísticas, inimitáveis, que Baden rejeitou como um pecado mortal. O samba clássico morreu com ele; ou melhor, antes dele.
Luís Antônio Giron
10 Comments:
O que não faz o fundamentalismo religioso!
De fato, o que não faz o fundamentalismo! O que não faz o cristianismo... enfim, deixou seu legado!
Lamentavel! Que os Orixás o tenham acolhido no Orun.
Melhor negar o mundo e aceitar a Cristo, ainda que perca tudo, ganhará a vida eterna.
Pena nós sentimos de quem desconhece a Deus.
Muito bom seu texto, parabéns!
Li uma entrevista dele de 1999 na qual ele não renegava os afro-sambas. Apenas falou de algumas ressalvas que ele tinha em função da sua religiosidade...
O mais triste aqui são as pessoas ignorantes acusando o cristianismo de destruir a arte. A Igreja Católica absorveu a arte pagã (ela quase toda dedicada a divindades, como os afrosambas) e produziu uma arte sacra que é o início da música ocidental como conhecemos hoje. Que haja um movimento evangélico ignorante, não é motivo para fazer acusações absurdas contra o cristianismo, quando até o Choro está cheio de influências do barroco, que transpira catolicismo.
A Igreja Católica já teve seu tempo de fundamentalismo também,as cruzadas e a santa Inquisição não me deixa mentir.
Italo,aceitar cristo,''pra morrer e ficar dormindo até sabe Deus quando''... O camdomblé ao menos ensina que o ser continua seu processo evolutivo do lado de lá,não tem dorminhoco no além.
Jesus voltará
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