Esse mundo perfeito de Madeleine Peyroux
A cantora americana Madeleine Peyroux chega a seu terceiro CD em dez anos de carreira. O título, Half the Perfect World (Universal), vem de uma canção recente do casal Leonard Cohen e Anjami Thomas, e revela o empenho de reciclagem e originalidade de uma intérprete que se firmou no início de carreira mais pela semelhança com timbres do passado do que pelo estilo pessoal - como se isso fosse possível. No novo trabalho, o melhor de sua carreira, ela demonstra ser uma intérprete madura aos 32 anos, sem rejeitar influências. É preciso ressalvar que cantores costumam se plasmar em outros cantores, como se houvesse uma imantação vocal que os unisse sob alguma metodologia subterrânea. Curioso: as vozes ouvem vozes, mais do que notas dos compositores.
Madeleine é um caso entre muitos. Causou surpresa com seu CD de estréia, Dreamland, lançado em 1996. O espanto se deu menos pela qualidade de sua interpretação que a semelhança com um mito vocal do passado, Billie Holiday (1815-1959). Os fãs de Lady Day sentiram calafrios ao se deparar com aquilo que eles identificaram como uma reencarnação: o mesmo timbre frágil – que lembra a de um trompete com surdina – de Billie, a mesma emissão de melodias, com mordentes roucos ao final das frases, e o repertório idêntico, feito de standards da canção popular americana. E tudo soava ainda mais excêntrico porque Madeleine era uma moça rechonchuda de apenas 22 anos, branca e bem nascida na pacata cidade de Athens, no estado da Geórgia - traços quase avessos aos de Billie, que era negra e cresceu pobre nas ruas, passou fome e lutou para sobreviver na música até morrer destruída pela heroína.
Nenhuma agrura atingiu Madeleine. Seu sucesso foi imediato e ela ficou famosa no segundo CD, Careless Love, de 2004, novamente uma mistura de standards e um travo melancólico inevitável, herdado de Billie Holiday. Não há como negar o parentesco. Além do timbre e do modo de cantar, talvez outro ponto em comum entre Madeleine e Billie resida no temperamento retraído. Madeleine buscou a discrição desde o início. Filha de pais hippies, ela se mudou para Nova York quando tinha 6 anos, depois morou na Califórnia e em Paris. A mãe, professora de francês, levou-a à França quando se divorciou do marido. E Madeleine aperfeiçoou o sotaque francês e o gosto refinado. Estudou também violão. Aos 15 anos, ela se juntou ao grupo Riverboad Shufflers, que atuava nas calçadas do Quartier Latin em Paris. Passou a cantar na noite. Em 1990, entrou para a Lost Wandering Blues and Jazz Band. Foram dois anos de excursão pela Europa. A experiência serviu como base para o Dreamland, de 1996. Um dos segredos de Madeleine foi ter-se cercado desde o princípio de músicos excelentes. No primeiro álbum, era acompanhada pelo pianista Cyrus Chestnut, o saxofonista James Carter e os guitarristas Vernon Reid e Marc Ribot, entre outras estrelas. Cantar parecido com Billie Holiday lhe deu glória e boas críticas, mas, ao mesmo tempo, a rejeição de muitos puristas do jazz, que a viam como imitadora. Nos de dez anos que se seguiram, porém, Madeleine mostrou ser mais que um clone sonoro.
Nem tudo foi discreto como ela pensava. Na virada do século, ela conheceu o multi-instrumentista de jazz William Galison. De 1999 a 2003, os dois namoraram e gravaram o EP Get You on My Mind. O casal se desfez antes de o disco ser lançado, em 2004, sem dar crédito a Galison. Ele ameaçou a ex-namorada e processou-a. O escândalo só foi abafado pelo êxito de Careless Love, álbum que tornou Madeleine referência no jazz. Mais uma vez, teve a seu lado músicos de peso, como o guitarrista Dean Parks, o pianista Larry Golding e o baterista Scott Amendola.
Em Half the Perfect World , a bagagem de conhecimento e desilusões pesa de modo positivo. Para destilar o tema do álbum - aquilo que ela chama de “ponto de vista feminino” -, Madeleine se apóia num quinteto, formado novamente por Parks e Amendola, com o acréscimo do baixista David Piltch, do percussionista Jay Bellerose e do tecladista Sam Yahel. Este último forneceu uma característica especial ao resultado sonoro, mais eletrificado do que os trabalhos anteriores de Madeleine. O repertório é mais amplo e traz composições recentes, como a faixa-título, que ela interpreta como uma bossa nova, a polca “(Looking for) the Heart of Saturday Night”, de Tom Waits, e “River”, canção de Natal de Joni Mitchel, que ela canta em duo com a canadense k.d. lang. Há também quatro composições em que Madeleine colaborou diretamente como letrista. É irresistível para qualquer intérprete cometer canções. E as que trazem os versos de Madeleine não fazem feio entre as 12 faixas do trabalho. O disco abre com o blues “I’m all right”, assinada por ela, o produtor Larry Klein e Walter Becker (da dupla Steely Dan). É uma canção otimista, apesar do tema da mulher agredida pelo namorado. A atmosfera do disco oscila entre a ironia e a tristeza, o standard jazzístico e a balada popular. Entre os clássicos, “The Summer Wind” (Johnny Mercer), o fox “Smile”, de Charles Chaplin, e a valsa boêmia “La Javanaise”, de Serge Gainsbourg, a melhor abordagem do CD. Acompanhada por um quarteto de cordas, a artista exibe domínio da língua e do rubato e transporta para o passado distante a música, como se a valsa amarga Gainsbourg pudesse ter sido cantada por Edith Piaf. É a melhor interpretação da trajetória de Madeleine. Em todas as faixas, sua voz quebradiça e sensível se faz ouvir como um instrumento solista expressivo. É possível finalmente ouvi-la sem pensar apenas em Billie Holiday.
De alguma forma, Madeleine quis exorcizar em Half the Perfect World a alma antiga que diz possuí-la. Felizmente, não consegue. A intérprete encanta pelos miasmas do passado que sabe conjurar em uma combinação exata.
Luís Antônio Giron
Valor Econômico 6/10/2006
1 Comments:
Excelente resenha,fui procurar ouvi-la,adorei a cantora.
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