Luís Antônio Giron
Música Brasileira deste Século Por seus Autores e Intérpretes
O Sesc de São Paulo começa a lançar a coleção de CDs "A Música Brasileira deste Século por seus Autores e Intérpretes". A instituição (que continua contando com o iluminismo de seu diretor, Danilo Santos de Miranda) terá que ser rápida porque a expressão "deste século" logo será obsoleta, pelo menos para a índole do pacote coleção, que aproveita as gravações do programa "Ensaio", dirigido e concebido por Fernando Faro, com produção de J. C. Botezelli, o Pelão. O programa é quase do século passado. Iniciou-se em 1969 na TV Tupi e trocou pela TV Cultura entre 1974 e 1975. A partir de certa época, ainda na Cultura, mudou de nome para "MPB Especial" e, mais tarde, "Ensaio" novamente. A coleção deveria se intitular "Música Brasileira do Século XX por seus Autores e Intérpretes", ressalvando-se o fato de que muito da música do século XX é diretamente ligada à do século XIX.
O programa de Faro e Pelão amealhou cerca de 200 horas de gravações. Apesar de fazer a coleta de material sonoro raro, ele sempre teve uma atmosfera melancólica, para não dizer lúgubre, com o músico colocado sob a luz de um spot, como que submetido ao derradeiro interrogatório de sua vida. E o dado mais inquietante era a inexistência do som das perguntas, como se elas fossem algo a ser pré-concebido como óbvio. "Ensaio" sempre foi o programa das perguntas tão óbvias que não precisariam ser enunciadas. Daí a pior fantasmagoria introduzida nas sessões de uma hora: tudo se trata de um depoimento sem diálogo, um solilóquio com lembranças e perguntas pressupostas. Era uma coisa chata, pois representava a mumificação em vida dos músicos.
O fato é que as gravações sem aquelas imagens estilo "Vale dos Reis em Luxor" chegam ao mercado e o título vale enquanto o século não acabar. Depois deverão constituir a série "A Música do Século que Passou". A ausência da imagem preenche um enorme vazio. As falas dos músicos ganham mais vida nos seus monólogos e, ainda que as músicas sejam não raro mal executadas, valem pelo teor documental. Os discos vêm com boa documentação, embora os textos biográficos sejam breves e baseados nos depoimentos sonoros. Não há pesquisas maiores, além de datas de nascimento e morte e algum comentário em torno dos dados enfurnados nas gravações. Fica faltando um pedaço.
O primeiro suplemento traz cinco CDs de vultos da Música Popular Paulista, a MPP. Soa estranho, não? E é no bairrismo que o pacote se destaca porque suscita o debate em torno da validade desse tipo de manifestação que os cariocas, sobretudo, sempre fizeram questão de menosprezar.
Os discos trazem os seguintes shows-depoimentos: Adoniran Barbosa (1910-1982) no "MPB Especial", em 28 de novembro de 1972; o sambista Geraldo Filme (1928-1995), em novembro de 1992 para o programa "Ensaio" (não consta a data); a dupla caipira Tonico (1919-1994) e Tinoco (1920), no programa "MPB Especial" em 30 de abril de 1973; o poeta e cantor caipira João Pacífico (1909-1998), em depoimento ao "Ensaio" em 1991 (sem data específica); e, finalmente, Roque Ricciardi, o Paraguassu (1894-1976), no "MPB Especial" de 1° de julho de 1974.
Em geral, o que vale na tal MPP é a modinha e a moda de viola. Afinal, São Paulo foi apelidada pelos bandeirantes de "boca do sertão" (e a palavra "sertão", corruptela de "desertão", foi cunhada por aqueles desbravadores); é uma reserva de pranto e conservadorismo - pelo menos nos seus albores e interiores (Não vamos nos esquecer dos rituais satânicos e das orgias realizadas não longe do Largo de São Francisco pelos poetas cantores Manuel Antônio de Almeida e seu escudeiro, o mineiro Bernardo Guimarães, "les enfants san souci" ) . O samba paulistano padece de falta de originalidade.
Por isso, os piores CDs do pacote pertencem a Adoniran Barbosa e Geraldo Filme - nesta ordem de desimportância. Filme foi um animador e um testemunho do claudicante carnaval da Paulicéia. Morreu pensando no Carnaval, o que não faz currículo para ninguém. Seu valor como compositor foi preservar a memória do ingênuo samba da comunidade negra paulistana, que se localizava no Bexiga, Barra Funda e Campos Elíseos. Sambas rurais, sambas de roda e de partido alto dão colorido aos depoimentos do sambista. Foi um medíocre bem intencionado. Suas composições tinham a virtude de não possuir exatamente melodia ou harmonia, mas lembranças de estruturas do alheio.
Já Adoniran Barbosa é um caso mais pitoresco. É quase dado consolidado de que ele não foi um grande compositor, mas um especialista em "caitituagem", como se chamava, nos anos 30 e 40, a promoção de músicas. Ele se associava aos sambistas da Alameda Glete, reduto da malandragem local, e lançava os sambas na rádio e no jornal, onde tinha santos fortes a apoiá-lo. Sua fama era como ator de tipos cômicos, como o do judeu, o do vêneto, o do negro, de tipos que tratava de ridicularizar pela maneira de falar em seus programas de rádio. O responsável pelos tipos, conforme diz no depoimento do disco, foi o radialista Osvaldo Moles. Só para plagiar o filósofo alemão Nietzsche, Adoniran representa a ascensão do ator na MPB. Nem Vicente Celestino, nem Ottilia Amorim (atores que gravaram) nem ninguém logrou o que ele fez: representar o compositor, sem nunca o ter sido. Quase tudo o que Adoniran fez foi em parceria. E o depoimento é de uma artificialidade exasperante; ele faz o gênero pobretão faminto, como se morasse em Mogadíscio e não no farto Bexiga. Vamos parar de mito e colocar Adoniran no nicho que lhe é devido: o do ator, não do grande músico. Os próprios membros dos Demônios da Garoa contam que Adoniran lhes mandava sketches cômicos para que eles musicassem... Adoniran prolongou ad infinitum os estereótipos sonoros de seu tempo.
Muito diferente são a dupla Tonico e Tinoco e o poeta João Pacífico. Eles tinham o que dizer e o que cantar, suas toadas e modinhas soam até hoje lindas, definitivas. Eles contam histórias de luta e de canções que entraram para o imaginário popular paulistano. Coisas da boca-do-sertão. Tonico e Tinoco cantando "Rei do Gado", "Rei do Guasca" e outros monarcas, com a credibilidade de quem viveu as lides rurais. João Pacífico, o bardo de Cordeiro, depois Cordeirópolis, que gravou 78 LPs, autor de toadas de recorte clássico, como "Alpendre da Saudade", "Goteira", "Tapera caída" e "Gostinho de Saudade", que diz: "Me dá licença/ Estou chegando lá do mato/ Moro longe desse asfalto/ Atrás da serra é meu rincão/ Lá onde e moro não existe luz na rua/ Moro onde nasce a lua/ E tem nome de sertão". Porque "sertão" é palavra paulicéia e existiu para ir dar nos poemas dos cantadores.
João Pacífico reflete o interior, Adoniran a malandragem que vive de nunca dizer a verdade, Filme o Carnaval, Tonico & Tinoco o sertão.... Que imagem tem São Paulo de verdade?
O CD de Paraguassu fornece a senha. Conhecido como "o italianinho do Brás", Roque Ricciardo, nascido na rua Silva Jardim, no Belém. em 1894, compõe a imagem perfeita do paulistano. "Mudei meu nome para Paraguassu porque me enchi de ser chamado de italianinho do Brás", declara. Suas modinhas são as mais bonitas; suas histórias, as mais signififativas: conheceu Eduardo das Neves em São Paulo, que o convidou a se apresentar em circos e gravar. Foi o primeiro cantor paulistano a gravar em 1912 (Casa Edison), conta que o gramofone foi uma experiência de impacto por causa de um italiano da Barão de Itapetininga, chamado Don Bastiano, fato que o fez se dedicar à "máquina falante" para sempre. Isso em 1907. Ainda sentimos o impacto do espanto...
Paraguassu é o mais paulistano de todos por ter nascido na capital e ter refletido a mistura que o imigrante experimentou. O "italianinho do Brás" se recusou a assumir o apelido, pegou um nome indígena - de mulher, aliás - e se devotou ao mais luso dos gêneros: a modinha, mais tarde chamada de seresta. O CD começa com "Mágoas", modinha assinada por ele e lançada em 1929, provocou diversos suicídios na época. Conheceu a atriz Magarida Max, Bahiano, K.D.T., Catulo da Paixão Cearense. No CD, conta como os discos mecânicos eram gravados: "Na gravação mecânica, o timbre da voz não mudava. Era sempre igual." Era preciso gritar, porque "era dura a membrana para furar a cera da matriz". Em 1928, Paraguassu foi um dos primeiros a gravar pelo sistema elétrico ("Berço e Túmulo" e "Choça do Monte'). O técnico mandava "abrandar a voz" - era o início do canto brasileiro. E canta assim, abrandado, a canção "Saudades de Alguém", de sua autoria, uma espantosa premoninção da melodia de "Yesterday", de Lennon & McCartney.
É caso de precisão separar o bom do médio. Vamos eleger Paraguassu, o seresteiro trágico, da São Paulo nebulosa do Romantismo, como padroeiro e Adoniran apenas como ator. A "boca do sertão" é um dos berços dos seresteiros, um dos berços do Brasil melancólico. Mesmo que Faro e Pelão tenham insistido tanto, não adianta querer ver samba na MPP.
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