Fonotipia

Vou postar aqui comentários de CDs e DVDs musicais. Luís Antônio Giron

Thursday, July 14, 2005

O experimental Trent

O compositor americano Trent Reznor tem vivido nos últimos tempos a crise da meia-idade. Aos 40 anos, esse artista experimental e esquivo está há 16 à frente de um projeto artístico do qual é o único integrante fixo: Nine Inch Nails. A banda-projeto, que varia de músicos e recursos ao sabor das necessidades de Reznor, acaba de lançar o quinto CD em 16 anos de trajetória errática, intitulado With Teeth. Reznor tenta se recuperar da depressão e do excesso de álcool e drogas que bloquearam sua criatividade em 2002. With Teeth funciona como uma terapia reativa para o músico.
O álbum foi lançado no iníco de maio nos Estados Unidos em álbum duplo de vinil. O CD chega ao Brasil sem as letras e os créditos, que figuram em pôster no produto original. Reznor não gosta do formato reduzido do CD e convida os consumidores a fazer o download do pôster no site oficial www.nin.com. Vale a pena, pois o trabalho se organiza em torno da forma-canção e da despersonalização do indivíduo, perdido na selva selvagem de um mundo superpovoado por signos imprecisos. Visualmetne, o pôster dispõe os versos de cada canção como um sistema planetário difuso, jogado sobre um fundo marrom-escuro. É tradução visual de um desenho sonoro renovador.
Há músicos que fazem ruído para disfarçar banais melodias acompanhadas. Se cantadas com uma guitarra, virariam um canção como as outras. O teor de radicalidade de um artista pop contemporâneo pode ser medido pela capacidade que ele tem de subverter a forma canção. As composições de Reznor são irredutíves à canção. Elas compreendem ruído, edição e distorção, letras de angústia e vastas referências, que incluem correntes como grunge, industrial, drum’n’bass, gótico e vanguarda eletrônica erudi121’ta.
Mesmo assim, Reznor tenta ser menos radical em With Teeth. Afirma que o álbum contém canções. "É mais limpo e menos conceitual que os trabalhos anteriores", explicou em artigo à revista Rolling Stone. "São doze golpes na cara – sem enchimentos, sem instrumental, só direto ao ponto. São canções parentes umas das outras".
O disco soa muito direto. Traz 14 faixas, compostas, editadas e projetadas exclusivamente por Reznor. Em algumas, a bateria de Dave Grohl, líder dos Foo Fighters, se faz ouvir. Certa suavidade melódica comparece em apenas duas – a que abre e a que fecha o disco, acanção "All the Love in the World" e o episódio instrumental "Right where it belongs". O resto é ruído, que atravessa os 50 minutos do álbum como um fator determinante e estrutural. No ambiente sonoro atual, dominado pela inquietude, as invenções de Reznor fazem avançar as fronteiras da ousadia.

O último de Lulu


Poucos músicos sofreram sucessivas penas capitais da crítica e de boa parte do público como o carioca Lulu Santos, 51 anos, 29 de carreira. Apesar de nunca ter conquistado a unanimidade, ele resistiu às execuções se tornou um dos maiores fazedores de sucesso da música popular brasileira. Há quatro anos, o músico fez um balanço da trajetória com o Acústico MTV, programa, CD e DVD. Agora lança os dois produtos com o título Ao Vivo MTV. Mais uma vez, Lulu conta a história da sua vida em duas dezenas de sucessos – especificamente 22 (18 no disco), cobrindo os últimos 22 anos. É uma história de sobrevivência. NO DVD, ele aparece pela primeira em uma performance realmente ao vivo. "No projeto acústico, eu ficava engessado", explicaa, em entrevista à Época. "Havia uma direção externa. Agora sou eu mesmo, suando a camiseta e soando bem, vibrando e dançando daquela maneira irresponsável e entusiasta que só acontece no palco. E show é o meu forte".
Sem dúvida. Gravado há três meses no Claro Hall. Rio, o espetáculo resulta de um ano de estrada. Ao longo de uma hora e meia de músicas interligadas em pedal eufórico, Lulu à guitarra e quinteto se apresentaram diante de um público pagante de várias gerações, que acompanha cada sucesso e vibra até mesmo com a música inédita, o rock latino "Sem Nunca Dizer Adeus", com refrão de guitarra calcado em "La Bamba". O ápice do espetáculo acontece quando ele canta "Tudo Bem", lenta e lancinantemente, aos prantos, acompanhado por um teclado. "É um interpretação nova", define. "A música brasileira está infestada de cool. Eu reivindico para ela o grito do blues e do flamenco. Sou a faceta uncool da MPB."
O espetáculo segue o diapasão desenfreado país afora. Em Garanhuns, Pernambuco, no último fim de semana, fez o público de 80 mil pessoas bombar ao som do tecno "Chega de Dogma". No início do inverno, regeu o coro de 50 mil pessoas em Lages, Santa Catarina, que entoava "Como uma Onda no Mar". De balanço em balanço, Lulu se diz realizado. "Não concordo quando me chamam de ícone dos anos 80", diz. "Eu me sinto identificado comigo agora do que naqueles tempos. Aliás, vendi meu primeiro milhão de discos com Assim Caminha a Humanidade em 1994. Não sou dos anos 80, sou mais velho que a geração do Cazuza e Paralamas." Um pouco mais velho e, talvez por isso, mais estruturado. Lulu não dissipou o seu talento em experimentações artísticas e comportamentais. Casado com a atriz e jornalista Scarlett Moon desde 1978, ele soou careta para os mais moços e ousado para aos mais velhos. Já sambou, virou soul e heavy e não deixou nem mesmo de flertar com a e-music. Obteve sucesso e passou por anos de ostracismo e surras da crítica - que, confessa, o obrigaram a melhorar. Por essa teimosia férrea, há quem diga que Lulu é um monolito do pop rock. Ele concorda. "Eu era um garoto que gostava de Beatles, Rolling Stones, Roberto e Erasmo . Mas se começo a pensar no que sou, já quero virar algo diferente. Detesto ser reduzido. Dizem que eu componho bolero e pop açucarado. Mas se você quiser posso fazer salgadinhos também", brinca, com a humildade de quem já foi até mesmo crítico de música no início dos anos 80 e pensa em voltar a escrever. "Ninguém conseguiu me tirar nenhuma lasca."
Por mais que o ouvinte o rejeite, poucos passaram incólumes às suas melodias. É a senha do êxito: com letras e refrões diretos movidos a guitarras havaianas condimentadas a bolero, a música de Lulu adere para sempre à memória afetiva.


Thursday, July 07, 2005

Música Popular Paulista. Isto existe?

Luís Antônio Giron

Música Brasileira deste Século Por seus Autores e Intérpretes
O Sesc de São Paulo começa a lançar a coleção de CDs "A Música Brasileira deste Século por seus Autores e Intérpretes". A instituição (que continua contando com o iluminismo de seu diretor, Danilo Santos de Miranda) terá que ser rápida porque a expressão "deste século" logo será obsoleta, pelo menos para a índole do pacote coleção, que aproveita as gravações do programa "Ensaio", dirigido e concebido por Fernando Faro, com produção de J. C. Botezelli, o Pelão. O programa é quase do século passado. Iniciou-se em 1969 na TV Tupi e trocou pela TV Cultura entre 1974 e 1975. A partir de certa época, ainda na Cultura, mudou de nome para "MPB Especial" e, mais tarde, "Ensaio" novamente. A coleção deveria se intitular "Música Brasileira do Século XX por seus Autores e Intérpretes", ressalvando-se o fato de que muito da música do século XX é diretamente ligada à do século XIX.
O programa de Faro e Pelão amealhou cerca de 200 horas de gravações. Apesar de fazer a coleta de material sonoro raro, ele sempre teve uma atmosfera melancólica, para não dizer lúgubre, com o músico colocado sob a luz de um spot, como que submetido ao derradeiro interrogatório de sua vida. E o dado mais inquietante era a inexistência do som das perguntas, como se elas fossem algo a ser pré-concebido como óbvio. "Ensaio" sempre foi o programa das perguntas tão óbvias que não precisariam ser enunciadas. Daí a pior fantasmagoria introduzida nas sessões de uma hora: tudo se trata de um depoimento sem diálogo, um solilóquio com lembranças e perguntas pressupostas. Era uma coisa chata, pois representava a mumificação em vida dos músicos.
O fato é que as gravações sem aquelas imagens estilo "Vale dos Reis em Luxor" chegam ao mercado e o título vale enquanto o século não acabar. Depois deverão constituir a série "A Música do Século que Passou". A ausência da imagem preenche um enorme vazio. As falas dos músicos ganham mais vida nos seus monólogos e, ainda que as músicas sejam não raro mal executadas, valem pelo teor documental. Os discos vêm com boa documentação, embora os textos biográficos sejam breves e baseados nos depoimentos sonoros. Não há pesquisas maiores, além de datas de nascimento e morte e algum comentário em torno dos dados enfurnados nas gravações. Fica faltando um pedaço.
O primeiro suplemento traz cinco CDs de vultos da Música Popular Paulista, a MPP. Soa estranho, não? E é no bairrismo que o pacote se destaca porque suscita o debate em torno da validade desse tipo de manifestação que os cariocas, sobretudo, sempre fizeram questão de menosprezar.
Os discos trazem os seguintes shows-depoimentos: Adoniran Barbosa (1910-1982) no "MPB Especial", em 28 de novembro de 1972; o sambista Geraldo Filme (1928-1995), em novembro de 1992 para o programa "Ensaio" (não consta a data); a dupla caipira Tonico (1919-1994) e Tinoco (1920), no programa "MPB Especial" em 30 de abril de 1973; o poeta e cantor caipira João Pacífico (1909-1998), em depoimento ao "Ensaio" em 1991 (sem data específica); e, finalmente, Roque Ricciardi, o Paraguassu (1894-1976), no "MPB Especial" de 1° de julho de 1974.
Em geral, o que vale na tal MPP é a modinha e a moda de viola. Afinal, São Paulo foi apelidada pelos bandeirantes de "boca do sertão" (e a palavra "sertão", corruptela de "desertão", foi cunhada por aqueles desbravadores); é uma reserva de pranto e conservadorismo - pelo menos nos seus albores e interiores (Não vamos nos esquecer dos rituais satânicos e das orgias realizadas não longe do Largo de São Francisco pelos poetas cantores Manuel Antônio de Almeida e seu escudeiro, o mineiro Bernardo Guimarães, "les enfants san souci" ) . O samba paulistano padece de falta de originalidade.
Por isso, os piores CDs do pacote pertencem a Adoniran Barbosa e Geraldo Filme - nesta ordem de desimportância. Filme foi um animador e um testemunho do claudicante carnaval da Paulicéia. Morreu pensando no Carnaval, o que não faz currículo para ninguém. Seu valor como compositor foi preservar a memória do ingênuo samba da comunidade negra paulistana, que se localizava no Bexiga, Barra Funda e Campos Elíseos. Sambas rurais, sambas de roda e de partido alto dão colorido aos depoimentos do sambista. Foi um medíocre bem intencionado. Suas composições tinham a virtude de não possuir exatamente melodia ou harmonia, mas lembranças de estruturas do alheio.
Já Adoniran Barbosa é um caso mais pitoresco. É quase dado consolidado de que ele não foi um grande compositor, mas um especialista em "caitituagem", como se chamava, nos anos 30 e 40, a promoção de músicas. Ele se associava aos sambistas da Alameda Glete, reduto da malandragem local, e lançava os sambas na rádio e no jornal, onde tinha santos fortes a apoiá-lo. Sua fama era como ator de tipos cômicos, como o do judeu, o do vêneto, o do negro, de tipos que tratava de ridicularizar pela maneira de falar em seus programas de rádio. O responsável pelos tipos, conforme diz no depoimento do disco, foi o radialista Osvaldo Moles. Só para plagiar o filósofo alemão Nietzsche, Adoniran representa a ascensão do ator na MPB. Nem Vicente Celestino, nem Ottilia Amorim (atores que gravaram) nem ninguém logrou o que ele fez: representar o compositor, sem nunca o ter sido. Quase tudo o que Adoniran fez foi em parceria. E o depoimento é de uma artificialidade exasperante; ele faz o gênero pobretão faminto, como se morasse em Mogadíscio e não no farto Bexiga. Vamos parar de mito e colocar Adoniran no nicho que lhe é devido: o do ator, não do grande músico. Os próprios membros dos Demônios da Garoa contam que Adoniran lhes mandava sketches cômicos para que eles musicassem... Adoniran prolongou ad infinitum os estereótipos sonoros de seu tempo.
Muito diferente são a dupla Tonico e Tinoco e o poeta João Pacífico. Eles tinham o que dizer e o que cantar, suas toadas e modinhas soam até hoje lindas, definitivas. Eles contam histórias de luta e de canções que entraram para o imaginário popular paulistano. Coisas da boca-do-sertão. Tonico e Tinoco cantando "Rei do Gado", "Rei do Guasca" e outros monarcas, com a credibilidade de quem viveu as lides rurais. João Pacífico, o bardo de Cordeiro, depois Cordeirópolis, que gravou 78 LPs, autor de toadas de recorte clássico, como "Alpendre da Saudade", "Goteira", "Tapera caída" e "Gostinho de Saudade", que diz: "Me dá licença/ Estou chegando lá do mato/ Moro longe desse asfalto/ Atrás da serra é meu rincão/ Lá onde e moro não existe luz na rua/ Moro onde nasce a lua/ E tem nome de sertão". Porque "sertão" é palavra paulicéia e existiu para ir dar nos poemas dos cantadores.
João Pacífico reflete o interior, Adoniran a malandragem que vive de nunca dizer a verdade, Filme o Carnaval, Tonico & Tinoco o sertão.... Que imagem tem São Paulo de verdade?
O CD de Paraguassu fornece a senha. Conhecido como "o italianinho do Brás", Roque Ricciardo, nascido na rua Silva Jardim, no Belém. em 1894, compõe a imagem perfeita do paulistano. "Mudei meu nome para Paraguassu porque me enchi de ser chamado de italianinho do Brás", declara. Suas modinhas são as mais bonitas; suas histórias, as mais signififativas: conheceu Eduardo das Neves em São Paulo, que o convidou a se apresentar em circos e gravar. Foi o primeiro cantor paulistano a gravar em 1912 (Casa Edison), conta que o gramofone foi uma experiência de impacto por causa de um italiano da Barão de Itapetininga, chamado Don Bastiano, fato que o fez se dedicar à "máquina falante" para sempre. Isso em 1907. Ainda sentimos o impacto do espanto...
Paraguassu é o mais paulistano de todos por ter nascido na capital e ter refletido a mistura que o imigrante experimentou. O "italianinho do Brás" se recusou a assumir o apelido, pegou um nome indígena - de mulher, aliás - e se devotou ao mais luso dos gêneros: a modinha, mais tarde chamada de seresta. O CD começa com "Mágoas", modinha assinada por ele e lançada em 1929, provocou diversos suicídios na época. Conheceu a atriz Magarida Max, Bahiano, K.D.T., Catulo da Paixão Cearense. No CD, conta como os discos mecânicos eram gravados: "Na gravação mecânica, o timbre da voz não mudava. Era sempre igual." Era preciso gritar, porque "era dura a membrana para furar a cera da matriz". Em 1928, Paraguassu foi um dos primeiros a gravar pelo sistema elétrico ("Berço e Túmulo" e "Choça do Monte'). O técnico mandava "abrandar a voz" - era o início do canto brasileiro. E canta assim, abrandado, a canção "Saudades de Alguém", de sua autoria, uma espantosa premoninção da melodia de "Yesterday", de Lennon & McCartney.
É caso de precisão separar o bom do médio. Vamos eleger Paraguassu, o seresteiro trágico, da São Paulo nebulosa do Romantismo, como padroeiro e Adoniran apenas como ator. A "boca do sertão" é um dos berços dos seresteiros, um dos berços do Brasil melancólico. Mesmo que Faro e Pelão tenham insistido tanto, não adianta querer ver samba na MPP.
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Friday, July 01, 2005

Selo Elenco, uma mini-história

O selo Elenco marcou o esplendor do desenho limpo e sintético da bossa nova. Nas atuais horas de lounge, ele retorna forte na Série Elenco (Universal), coleção de vinte CDs com álbuns remasterizados digitalmente e com as capas originais. Todos itens essenciais. Isso porque havia uma estética a reger os produtos e cada faixa gravada do selo Elenco, pioneiro da produção independente. Ele foi fundado em 1963 por Aloysio de Oliveira (1914-1995), ex-vocalista do Bando da Lua . Cantor e compositor de excelente formação, Aloysio soube criar uma noção de som cristalino e arranjos acústicos. O projeto gráfico de Cesar Villela refletia a intenção: o logo do selo sempre em destaque, fotos em alto-contraste petro e branco ou, no máximo, cores básicas.
Aloysio embarcou para os Estados Unidos com Carmen Miranda em 1939 e excursionou por lá com a estrela por duas décadas. Os dois tiveram um longo caso, até que a estrela decidiu casar-se com seu produtor, David Sebastian. Com a morte de Carmen, em 1955, Aloysio ainda manteve o Bando da Lua. Em 1956, trocou Hollywood pelo Rio para consolidar o estilo da bossa nova, que começava a se afirmar. Como diretor artístico da gravadora Odeon, lançou Tom Jobim, João Gilberto e a cantora Sylvia Tellesm, com quem se casaria em 1960. Assumiu a Phillips em 1960 e continuou animando a nova música brasileira. Em 1963, tomou a decisão de fundar uma gravadora. Alubou um escritório minúsculo no centro do Rio, contratou os estúdios da Rio-Som e convocou os grandes músicos bossa-novistas, como Tom Jobim, Maysa e Sergio Mendes, sem esquecer de alguns medalhões da velha guarda, como Cyro Monteiro e Aracy de almeida. Também farejou o sucesso de novíssimos talentos, como Maria Bethânia e Edu Lobo.
Em 1967, quando a bossa saiu de moda, Aloyisio sentiu a crise. Viúvo de Sylvia Telles (que morrera num acidente de carro), decidiu vender o selo para a Philips e voltou para os Estados Unidos. Morreu como um nostálgico guru da grande música.
As gravações comandadas por Aloysio fizeram história. São cinqüenta discos, com um elenco de fazer inveja até hjoje. Eles flagraram a passagem dos seguidores da batida e do canto introspectivo de João Gilberto para a geração da MPB, espontânea e rebelde.
Metade dos títulos da Série Elenco, organizada pelo pesquisador Charles Gavin e com comentários do jornalista Ruy Castro, chega pela primeira vez ao CD. Um novo suplemento deverá comepletar o catálogo até o fim de 2004. Cada disco oferece uma descoberta ou um reencontro Entre eles destacam-se três de 1966: Bossa Nova York, com Sergio Mendes Trio com convidados como o trompetista Art Farmer – e Contrastes, com a atriz Odette Lara estreando sambas de Chico Buarque; e Samba é Aracy de Almeida, com a cantora arrasando no samba esquema moderno. Outro título importante é The Astrud Gilberto Album, com a ex-mulher de João Gilberto. Ela foi meio esquecida no Brasil, mas se tornou cult entre japoneses e americanos pela absoluta ausência de vibratos no seu canto. Cyro Monteiro em "De Vinicius a Baden" e Lúcio Alves, no superclássico "Balançamba", mostram que se adaptaram facilmente aos novos tempos. O legado de Aloysio de Oliveira é uma coleção de meia centena de encantamentos.

Luís Antônio Giron

Bossa Nova Internacional


Não foi por acaso que o pagodeiro latino Alexandre Pires cantou Garota de Ipanema para George W. Bush na Casa Branca no início de outubro. Pires, um gênio do marketing, sabe que músicas de sua autoria – como "A Barata da Vizinha " ou "Sai da Minha Aba" não conquistariam a simpatia da elite dos falcões de Bush. Ele optou pela bossa nova pro motivos óbvios – e cantou muito bem, aliás, o clásssico de Tom e Vinicius. Bossa Nova é o cartão de crédito do músico brasileiro no exterior. O marco mais importante da conquista dos mercados internacionais pela música popular brasileira foi o show da Bossa Nova o Carnegie Hall de Nova York em 1962. A partir de então, o Brasil se adaptou ao gosto internacional.
De alguma forma, o cool samba da BN funcionou como sopa no mel dos ouvidos americanos. Os músicos brasileiros incorporaram elementos do jazz, desnacionalizaram e privatizaram o samba. O samba-exaltação de Ary Barroso está para o Estado Novo e o nacionalismo de Vargas assim como a Bossa Nova está para a internacionalização de Juscelino Kubitschek. A bossa nova produziu um samba capaz de agradar os americanos e o público europeu porque já se tratava de um gênero da linha de montagem do pós-guerra, como o baião, o rock, o cha-cha-cha. Os críticos americanos perceberam o parentesco da BN com o cool, sem prestar atenção a supostas qualidades poéticas das letras de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra. A bossa nova agradou enquanto funcionava como muzak, como fundo para elevadores, "Garota de Ipanema" em lobbies de hotel de luxo. A bossa nova representou a padronização e a qualidade do produto sonoro de exportação brasileiro. Os músicos e produtores desenvolveram o produto com cuidado e extrema inspiração. Até hoje não foi superado, e bossa nova é sinônjimo de música brasileira no exterior, seja Estados Unidos, Europa e Japão – que se tornou campo de trabalho para artistas que, se permanecessem confiando no público consumidor brasileiro, estariam já aposentados.
A Bossa Nova ainda movimenta o mercado internacional e o que se seguiu aproveita o vácuo da alta velocidade com que atuam bossa-novistas do calibre de João Donato, Roberto Menescal, Joyce e princpalmente João Gilberto – um merecido ídolo planetário.
Outro que conseguiu chegar lá foi Milton Nascimento, em 1969. Suas toadas tributárias da BN caíram no gosto americano e suíço porque Milton tem uma cultura musical imensa, e é capaz de adaptar os ritmos e arranjos brasileiros aos padrões do jazz suave. O mesmo se deu em meados dos anos 70 com o pianista Egberto Gismonti, que acabou virando um músico estrangeiro e jazzzista, tanto que se conformou ao modelo ECM Records – gravadora sediada em Munique e que formatou um estilo requintado de música instrumental. Chico Buarque arrebanhou o público italiano, mas ficou nisso, como uma espécie de seguidor desafinado do cunhado, João Gilberto, que foi casado com Miúcha, irmã de Chico.
Os tropicalistas é que não conseguiram nada no estrangeiro na época, apesar da pretensão-monstro de seus líderes de conquistar o mundo. Tardiamente, Caetano Veloso adquiriu fama nos Estados Unidos porque assumiu uma estética conformista e investiu no consumidor latino de Miami com suas canções em espanhol ou arremedos de Bossa Nova.
Nos anos 80, o rock dominou o Brasil e tirou do país a oportunidade de exportar música, já que o rock é marca registrada dos americanos e ingleses, ninguém faz rock melhor que eles. Quando samba voltou aos poucos a ser fashion nos anos 90, assistiu-se à ascensão de Tom Zé, um tardo-tropicalista que caiu no gosto da vanguarda do Village nova-iorquino, e dos modernos Chico Science e Lenine.
Mas quem opta pela bossa se dá melhor. Bebel Gilberto, filha de João Gilberto, fez sucesso no ano 2000 em Londres e Nova York com sua bossa-novíssima por conta do efeito bossa-nova. Ela como que fez despertar a cobiça dos DJs e produtores para o processamento do gênero para o lounge, para os chill-outs da vida. Hoje, internacionalmente, a bossa nova continua dominando por meio da eletrônica. O samba joão-gilbertiano se adaptou maravilhosamente às atmosferas rarefeitas da música eletrônica.

L.A.G.

Elis &Tom: o samba elétrico


O LP Elis & Tom, de 1974, faz jus ao título de marco da música popular moderna. Além de ter promovido o encontro único entre dois gênios de duas gerações diferentes – a cantora Elis Regina, então com 27 anos, e o compositor Antônio Carlos Jobim, vinte anos mais velho –, o produto trazia uma fórmula sonora inusitada: a bossa nova transposta a novos ritmos e harmonias e a um ambiente eletro-acústico, com a inclusão de baixo, teclado e guitarra elétricas à fórmula do conjunto tradicional alicerçado no piano. A "cozinha" sonora, a cargo do quarteto do pianista e arranjador César Camargo Mariano, então casado com a cantora, e das cordas regidas por Bill Hitchcock, permaneceu toldada durante 30 anos. Ela pode ser ouvida agora em todo o esplendor de novidade no relançamento do disco em embalagem que contém um CD e um DVD-Audio.

Nos dois suportes, o produto original experimentou um revelador processo de remixagem e digitalização. Ele tornou mais nítido o som dos outros músicos. As 14 músicas primitivas vêm acompanhadas de pequenas jam sessions ao final das, ruídos, contagem de compassos e diálogos. Antes de iniciar "Inútil Paisagem", por exemplo, Elis fala num dos três microfones que tinha à disposição (era muito inquieta e se mexia o tempo todo). Ao falar, Elis tinha a voz mais grave: "César, eu já fumei um maço de cigarro, pode?". Mariano responde: "Não pode, não." Tom intercede: "Diz a ela que ela já está crescida, pode fumar à vontade. Eu te dei a piteira, com a piteira filtra tudo." "Mas fica pernóstico", ironiza Elis.. Tom: "Eu só pego ar das montanhas". "Com piteira fica pernóstico", insiste a cantora, que esboça duas vezes "mas", Tom conta "um, dois, três" para finalmente atacarem a melodia cromática com perfeição: "Mas pra que...", ao passo que o piano desenha um contraponto com harmonias de blues. Assim, as músicas sofreram aumento de duração. "Inútil Paisagem" original durava 3 minutos e 11 segundos. Na versão nova, tem 29 segundos de acréscimo. "Só Tinha de Ser com Você", com 3 minutos e 50 no LP, agora aparece com um fade out de 18 segundos, com Elis brincando com a voz, acompanhada por Mariano (piano elétrico), Hélio Delmiro (violão, guitarra), Luizão Maia (baixo) e Paulinho Braga (bateria).

No DVD-A, comparecem duas faixas bônus: "Bonita" e um take alternativo para "Fotografia". Elis descartou a primeira porque tinha vergonha de cantar em inglês para o público brasileiro e não gostava do próprio sotaque – apesar dos protestos da equipe técnica americana (o disco foi gravado nos estúdios da MGM em Los Angeles), de Jobim e do produtor Aloysio de Oliveira. Não só Elis tem bom inglês, como a interpretação é mesmo intensa. O take de "Fotografia" dura 4 minutos e conta com a participação de Tom ao violão e à guitarra, era uma versão possível, mas o conjunto optou pela que estavam tocando em shows havia quatro anos.

O trabalho de restauro da master durou um ano e só foi possível com um investimento de 400 mil reais e um acordo entre as gravadoras. Trama e a Universal, detentora dos direitos da Philips. A tiragem inicial de 20 mil cópias está se esgotando.

Elis & Tom dispensaria a "sujeira" de estúdio. Mas ela fornece dramaticidade ao registro. O disco deve ser entendido como uma operação amorosa. Ela partiu de Mariano e de João Marcello Bôscoli, 33 anos, filho mais velho de Elis, sócio da Trama. "Foi uma emoção muito grande ouvir a fita do disco 30 anos depois", conta Mariano, de 60 anos. "Encontrei coisas que eu julgava perdidas." O ouvinte também vai redescobrir a música brasileira em um de seus produtos mais delicados.






Bowie em Diamond Dogs


Diamond Dogs, David Bowie, EMI A edição do trigésimo aniversário do LP do músico inglês traz um encarte ilustrado e um CD extra com material inédito. Destaca-se a faixa-demo com o tema de um musical sobre o romance 1984, de George Orwell, vetado pela viúva do autor. Bowie usou o material do espetáculo em Diamond Dogs, oitavo disco da carreira iniciada em 1967. As 11 faixas promoveram o funeral do glam rock. Tudo se passa numa Noa York miserável, infestada de cães famintos. O astro posa na capa meio cão meio andrógino, em pintura do belga Guy Peellaert. A genitália da figura fez furor em 1974 porque a filial americana da gravadora exigiu que fosse escondida. A capa vem explícita na nova edição.

Beatles sobem no telhado



A mina dos Beatles parece inesgotável. O quarteto britânico encerrou dez anos de atividades em 10 de abril de 1970 e, desde então, seus registros têm rendido compilações e edições de inéditos. O sonho da reunião do grupo se encerrou com o assassinato de John Lennon em 1980. Mesmo assim, há quem trabalhe para uma reconciliação no além-túmulo. E esta só pode acontecer por meio da tecnologia. O método de ressurreição se baseia no remix na remasterização. Quando tudo indicava que dos Beatles nada mais sairia está sendo lançado mundialmente, nesta segunda 17, o álbum Let It Be... Naked. Como informa o título, trata-se de uma versão despojada do LP Let It Be, o mais problemático item da discografia dos Fab Four. O resultado do trabalho do trio de produtores – Allan Rouse, Guy Massey e Paul Hicks - é incrível porque os Beatles soam, ao fim de carreira, como aquela banda de rock’n’roll de Liverpool, que tocava bem e possuía cançonistas inventivos, apesar de não ser dotada de lances experimentais. Estes ficavam por conta dos produtores. Algumas das mais conhecidas canções Lennon & McCartney e de George Harrison voltam à vida nuas, cruas e inesperadas.

Os Beatles tocavam com entusiasmo e energia, mesmo nos dois últimos anos, quando os velhos amigos começaram a discutir por qualquer motivo, na frente de diretores, produtores e das namoradas, que grudavam em cada um deles como carrapatos e acompanhavam as gravações. A história de Let It Be começa em tal conturbação. Em janeiro de 1969, os quatro não tocavam ao vivo havia três anos e resolveram voltar às bases. O projeto ganhou o título de Get Back. Paul sugeriu que ensaiassem em local isolado, um transatlântico, para montar o show para assinalar o retorno, dali a um mês, num teatro na Grécia ou em Marrakesch. Os ensaios, discussões e improvisos seriam filmados por câmeras móveis para resultar num documentário.

Acompanhados pelo diretor Michael Lindsay-Hogg e o produtor George Martin, todos acabaram indo para os estúdios Twickenham, perto de Londres, um galpão gelado e desconfortável. O inverno revelou-se rigoroso, e a atmosfera psicológica, ainda pior. "Senti que a banda estava acabada", disse Martin. Todos brigavam. Paul, imbuído na sobrevivência da banda, mandava até nos solos de George. Ringo foi embora. E as câmeras rodavam. Em uma reunião de emergência na casa de Ringo, optaram por terminar as músicas no estúdio Abbey Road em Saville Row, no West End londrino. O humor melhorou, até porque tiveram de se portar bem diante do músico convidado, o tecladista Billy Preston. Como não havia teatro disponível em Londres, subiram no telhado do prédio para filmar e gravar as músicas ao vivo e sem aviso. Isso aconteceu num meio-dia ventoso e gelado de 30 de janeiro de 1969. Ao longo de 42 minutos, os Beatles e Preston tocaram a todo volume nove músicas de Get Back. O trânsito parou, pedestres olhavam para o alto atordoados e os telhados vizinhos se encheram de gente, até que a polícia mandou baixar o som. Naturalmente, ela não foi atendida. Aquela foi a última aparição ao vivo dos Beatles. Dela resultou Let It Be, documentário e LP.

O filme caiu no esquecimento, mas o disco acabou sendo no último lançamento da banda, embora tenha sido seu penúltimo trabalho - em seguida, faria o ótimo Abbey Road, lançado em setembro daquele ano. Os Beatles passaram em março o material para o engenheiro Glyn Johns para que montasse um álbum. O técnico ofereceu duas versões, mas os músicos refugaram ambas. Por fim, em março de 1970, o produtor Phil Spector foi convidado a remixar o material, sem a presença da banda. Spector amava o overdub, a reverberação e o eco; acrescentou coro, orquestra e solos de guitarra. Concluiu o serviço em oito dias. Pouco depois, em 10 de abril, os Beatles romperam. O álbum ganhou o nome de Let it Be e foi lançado em maio. Era uma trilha sonora com direito até a ruído da ventania. O álbum conforme o gosto dos Beatles ficou na vontade.

Let It Be... Naked foi pensado num encontro casual de Paul com Lindsay-Hogg. Eles encomendaram à Apple a reelaboração dos 33 rolos de fita de Let It Be. Além de eliminar diálogos e quase os vestígios de Spector, o trio de remixers mudou a ordem das músicas e limou duas faixas: "Dig It" e ‘Maggie Mae". No lugar, introduziram uma versão rara de "Don’t Let me Down". Retrabalharam "Let It Be", ressaltando o órgão de Preston e reintroduzindo um solo básico de George. Trataram de extirpar a versão de "The Long and Winding Road" com orquestra e coro para substituí-la pela versão do show no telhado. E mantiveram o arranjo de "I Me Mine" porque faltava na gravação original a base harmônica. O resultado é meia hora de Beatles "desmixados" e remixados (acompanha um CD bônus com 20 minutos de ensaios e conversas da banda, com direito a covers de rocks de Buddy Holly). Sem ecos, ruídos e reverberações, as 11 músicas daquele que teria sido Get Back soam mais enxutas e modernas. A ausência de Phil Spector preencheu uma lacuna histórica. Ouvimos os Beatles subirem de novo no telhado e soarem, nas palavras de Paul, como uma "grande bandinha de rock". Talvez a maior delas.

Luís Antônio Giron