Luís Antônio Giron
A história foi uma madrasta especial para a cantora carioca Elisete Cardoso (1920-1990), também conhecida pelos apelidos que lhe davam os jornalistas: A Divina, A Enluarada, A
Magnífica, Mulata Maior, a Preferida, Lady do Samba e — o mais expressivo de todos — Machado de Assis da Seresta. Última artista pertencente à chamada “era antiga” da música popular brasileira a ter conseguido fazer sucesso, tornou-se a primeira a ouvir pesar sob sua gar
ganta a espada da moda. Foi catalogada como antigüidade, mas nuncase conformou com isso; reclamou até o fim do esquema do jabaculê e do fato de os grandes intérpretes terem sido alijados da programação das rádios. Sua contribuição pode ser reavaliada agora com o lança-
mento de diversos CDs por três gravadoras, que traçam o acidentado percurso estético da intérprete do início dos anos 50 à década de 70. São eles “Canção do Amor Demais“ (Festa/relançamento Movieplay), com Elisete interpretando canções de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, a caixa “Elisete Cardoso, A Divina“ (Copacabana), com quatro CDs
mostrando gravações entre 1957 e 1974, e a série “Elizeth Cardoso” (RGE), que traz, em três CDs, as 36 faixas (na época 18 discos de 78 rotações) para a gravadora Todamérica entre 1950 a 1955. Assoma desses registros uma cantora completa, quem sabe mais clássica do que supôs a crítica dos anos 80 e imagina a dos 90, acostumada a trabalhar com a surrada dicotomia velho/novo. Com uma técnica vocal superior à de Dalva de Oliveira e uma inflexão expressiva menos datada do que a exibida por Elis Regina, ela resiste ao teste dos cruéis ouvidos da posteridade. Estes, apesar de sabedores de uma evolução que aquela voz não pôde alcançar, não têm como não se render à enunciação melódica de Elisete.Os artistas da velha guarda goza-
vam do auge quando ela ensaiou os primeiros shows, aos 5 anos, cantando a marcha-charleston “Zizinha” (José Francisco de Freitas) como convidada infantil do clube Kananga do Japão. A maioria dos semideuses da “época de ouro” já estava morta quando ela foi chamada a de-
fender na TV Record a Velha Guarda, apresentando o programa “Bossaudade” em, contraposição com a então chamada MPBM, música popular brasileira moderna, logo abreviada para MPB. O fato é que, até a aparição de Elis Regina, fundadora emepebista, com “Arrastão” (Edu Lobo-Vinicius de Moraes), em 1965, Elisete (um quase anagrama
de “Elis”), era considerada a grande intérprete brasileira.
Para atingir essa condição, esfalfou-se no trabalho, colecionou imensas decepções e pequenos triunfos. A primeira oportunidade profissional aconteceu por acaso, no seu aniversário de 15 anos. Elisete Moreira Cardoso morava ainda ao lado do morro de Mangueira quando Jacob do Bandolim ouviu-a cantar na festa de aniversário. Convidou-a então para fazer teste na Rádio Guanabara. Até então havia trabalhado com balconista, funcionária e peleteira. O pai, músico amador, não gostou, mas a menina fez questão de se apresentar no programa “Suburbano”. Lá cantavam Marilia Batista, Vicente Celestino, Aracy de Almeida e Noel Rosa. Com este, cantou em dueto “De babado sim”, samba gravado naquela época pelo autor e Marilia Batista. Assinou contrato com a Rádio Educadora e atuou como passista em uma revista. Um dos atores era Ari Valdez. Casou-se e separou-se dele rapidamente. Passou a cantar em cabarés e circos, foi taxi-girl. Mudou-se para São Paulo durante a Segunda Guerra e fez
parte do elenco da Rádio Cruzeiro do Sul. Em 1947, de volta ao Rio, gravou seu primeiro dis-
co, pelo selo Star. As músicas eram “Braços vazios” (Moacir Costa) e “Mensageiro da sauda-
de” (Ataulfo Alves-José Batista). O disco não fez sucesso. Em 1949, entrou para a gravadora To
damérica. Ali, conforme mostram os três volumes da RGE, começou a fazer sucesso com interpretações maduras e precisas, revelando domínio e controle da melodia. Seuprimeiro êxito virou prefixo musical ao longo de toda a vida: “Canção de amor” (Chocolate-Elano de Paulo). Participou do primeiro programa de TV, na Tupi, em 1951.
Durante a fase na Todamérica , foi uma das primeiras intérpretes de Nelson Cavaquinho e
lançadora de sucessos de Carnaval. No terceiro volume da coleção da RGE (que traz textos do
crítico Tárik de Souza), ela comparece interpretando o samba “Amor que morreu“ (Nelson Cavaquinho Roldão Lima-Gilberto Ferreira), além de marchas e sambas carnavalescos, como “Ao deus dará” (Haroldo Barbosa-Bidu Reis). Também cultivou o gênero Fossa, em sambas
lentos sub-Lupicínio Rodrigues do tipo “Vida vazia” (Mário Lago-Chocolate) e “Tormento” (Carioca-Jeanete Adib). Os sambas de fossa incutiram na posterior Bossa Nova uma ansiedade da influência. Esta se trai nas músicas menos melancólicas de Tom e Newton Medonça.
Eles faziam uma leitura da Fossa e pensavam em intérpretes a contrapelo de Elisete, além do que “bossa” e “fossa” formam um par mínimo, anagramático Em 1956 ela trocou a Todamérica pela a gravadora Copacabana e ali consolidou o nome. O sucesso já estava raro quando, aos 38 anos, recebeu o convite de Vinicius para gravar o LP “Canção do Amor Demais” (Festa).
Com a eclosão da Bossa Nova, foi convidada a se juntar com a Velha Guarda. Em 1964, interpretou as “Bachianas brasileiras n.º 5”, de Villa-Lobos, no Teatro Municipal de São Paulo. A cantora popular espantava o público erudito com seu brilho vocal. Em torno dela se reuniram então os grandes músicos da antiga. Cantou acompanhada por Pixinguinha e Cartola e, em 1965, lançou dois dos maiores êxitos de Nelson Cavaquinho: “Luz negra” e“A flor e o espinho” (1965, ambos no segundo volume da caixa). Em 1968, realizou no Teatro João Caetano o show que uniu Bossa Nova e Velha Guarda, ao lado de Jacob do Bandolim e conjunto Época de Ouro e o Zimbo Trio. Seu último álbum, lançado em 1988, relia Pixinguinha em motivos melódicos renovadores.
Operou em música uma síntese que até hoje os críticos e historiadores não logram fazê-lo. Morreu magoada por não ter mais espaço em rádio e televisão, e, por conseguinte, estar quase esquecida pelo público.
Quando morreu, a competência e a maturidade haviam saído de moda. Seu jeito de cantar não combinava com o pop dominante, tributário dos tropicalistas que, por sua vez, diziam rezar pelo hinário de João Gilberto. Muito crítico tende a rejeitar o vibrato que ela utilizava simples-
mente porque a Bossa Nova o aboliu, atribuindo-lhe um elemento passadista. A atitude dos seguidores de João, de cortar parte do vocabulário musical, foi estratégica. Atingiram, 1assim, a síntese de linguagem bossa-novista. O problema está em que passaram a legislar que a síntese era a tradução direta de um suposto bom gosto. O vibrato, o glissando, os ornamentos, a lírica neoparnasiana da seresta, a dinâmica contrastante das melodias, a marcha harmônica regular, todos esses aspectos primitivistas da música brasileira foram deixados de lado em nome da modernidade. Nessa faxina estética, Elisete dançou. Mas há traços em suas interpretações que sobrevivem à medida que a Bossa Nova se converte em paradigma do classicismo do pop brasileiro. O mais saliente deles está na segurança. Afinada e rigorosa, ela parece não se deixar dominar pelos dramas amorosos retratados em boa parte das canções que aborda. Mesmo quando a música é elaborada na forma do sujeito lírico, a voz de mezzo soprano levemente metálica atua como uma narradora em terceira pessoa. Conta a história, sem deixar de se
emocionar discretamente com o conteúdo. Não compartilha do engajamento emocional de uma Aracy de Almeida, Dalva ou Dolores Duran. Mas tampouco é afeita ao distanciamento irônico de Nora Ney e Marília Batista. Mantém um equilíbrio que o futuro recente viria a interpretar
falsamente como impostação. Além de tudo, exibia um vibrato sem exageros, emitido com objetividade. Queria ressaltar um verso, uma palavra e o conteúdo de uma tragédia qualquer. Não foi por outro motivo que Vinicius de Moraes manteve o contato artístico com a cantora, mesmo depois de passada a onda da Bossa Nova . Foi ela a ter lançado, por exemplo, a valsa “Pela luz dos olhos teus”, letra e música de Vinicius, em 1963 (gravação que consta do volume 2
da caixa da Copacabana).Como o poeta definiu na contracapa, estampada em manuscrito, de “Canção do Amor Demais”, Elisete significava para ele “uma voz particularmente afinada” capaz de dar conta de treze músicas, sambas e canções criados por ele e Tom Jobim tendo em vista
arranjos e melodias complexos e letras com densidade poética.
Vinicius chamava a atenção para o fato de ela possuir “o timbre popular mas podendo respirar acima do puramente popular, com um registro amplo e natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a pungência dos que amaram e sofreram,
crestada pela pátina da vida.”
O CD de 31 minutos surpreende a intérprete a fazer a travessia entre a velha e a nova música popular brasileira, entre o popular e o erudito. Elisete e Tom ensaiaram as canções na casa do músico, na rua Nascimento Silva, 107. O LP mostrou pela primeira vez, quando de seu lançamento, em abril de 1958, a batida sincopada do violonista João Gilberto (que não é citado nos créditos do LP nem no texto de Vinicius), um acompanhamento rítmico original logo apelidado de “bossa nova”. O violão aparece nos oito primeiros compassos do samba “Chega de saudade”, acompanhando sincopadamente o solo do trombone, por Ed Maciel. As cordas atacam em dramatização, surge a flauta de Copinha. Entra de Elisete com sua impostação e um certo bom humor que não fazia parte de seu vocabulário de músicas depressivas, conduzida pelo violão. O vocal intervém, a cargo de Tom, João e Walter Santos. Depois, arpejos das cordas, pausas e batucada. No intermezzo, sem a cantora, os trombones de Ed e Gaúcho dialogam com apoio da bateria de Juquinha, tudo comandado pelo violão harmônico-rítmico de João. Este participou de outras faixas: “Eu não existo sem você”, “Caminho de pedra”, “Luciana” e, o samba-canção “Outra vez”, sucesso de Dick Farney quatro anos antes. Nesta última música, especialmente, a pontuação sincopada do violão impõe sua presença, destacando-se da
bateria tocada com vassourinha e das cordas bem discretas. Elisete elimina os vibratos e interpreta na região grave de sua voz. Uma abordagem quase-Bossa Nova. Na reedição, a primeira em 40 anos, o CD vem com um texto do jornalista Ruy Castro, bem como
datas e instrumentistas que participaram da gravação. É um dos marcos iniciais da Bossa Nova e, como observa Castro, um dos primeiros “songbooks” feitos no Brasil. O disco teve tiragem de 2 mil exemplares, sem repercussão alguma, já que o selo, dirigido pelo jornalista Irineu
Garcia, era patrocinado pelo Itamaraty e não tinha fins comerciais. Diz a lenda que João não participou de outras faixas do disco porque não gostava do jeito sério de interpretar típico de Elisete. Seja como for, deu-se uma metamorfose na cantora depois da experiência ao lado de
Tom, João e Vinicius. Ela passou a cantar de maneira diferente, sobretudo na articulação das palavras. O “r” forte e o “l” da pronúncia oficial cantada deram lugar, respectivamente, à guturalidade acariocada e à vocalização da consoante.
O fato pode ser observado na coleção da RGE, organizada e comentada com alta competência pelo jornalista e crítico Egídio Grandinetti Jr. As 79 faixas trazem em sua maior parte canções lançadas pela cantora. As gravadas antes de 1958, como “Noturno” (Custódio Mesquita-Evaldo Ruy), de 1957, e “Prece” (Vadico-Marino Pinto), exibem as características tradicionais. Elementos bossa-novistas se fazem sentir em 1962 no belo “Samba triste” (Baden Powell-Billy Blanco). Elisete se revela “cool”. Em “Minhas madrugadas”, de 1965, um das primeiras músicas de Paulinho da Viola a ter sido gravado, a técnica parece ter virado ao avesso do que Elisete havia concebido no início da carreira, e canta como uma Nara Leão dotada de experiência.
Nessa altura, cabe especular sobre quem é maior cantora nacional de todos os tempos. Por mais arbitrário que tal julgamento possa soar, o nome de Elisete não deve ser refugado de um possível rol de concorrentes. Se toda interpretação trai o ar de família de uma época, a qualidade do timbre de Elisete é trans-histórica. Tem um pouco da tessitura de Carmen Barbosa, um outro tanto do ponto de articulação de Marisa Monte. Elis Regina não teria existido sem seu concurso.
Os picos da glória intermitente que lhes foram destinados só dependem do nível de preconceito musical que afeta o público em determinado momento. Quando a história a esquece, pior para a história. Elisete nada perde. Ela tende a retornar, independentemente do gosto em vigor. A pátina da vida e da arte cinzelaram sua voz entre os clássicos da música brasileira.