Dolores Duran, o coração como bússola
Todo cantor é compositor. Se o seu destino se cumpre, quase sempre o intérprete se converte em criador. Porque ele inventa ao cantar, curva-se sobre uma melodia até fazer desta uma assinatura. O processo começa com a intuição e aos poucos se torna conhecimento. Esse tipo de metamorfose é rara na música popular. Mas aconteceu com Dolores Duran. Ela foi uma cantora que, por reelaborar as músicas que interpretava como se fossem suas, transformou-se em seguida em autora de algumas das mais lindas canções dos anos 50, como “Por causa de você” e “A Noite de meu bem”. Dolores morreu muito cedo, os 29 anos, cinquenta anos atrás. Mesmo assim, teve tempo suficiente para viver a sua arte e torná-la... por falta de chavão menos batido, para torná-la imortal.
A artista deixou um acervo pequeno e talvez condenado ao esquecimento, como se deu com tantos colegas contemporâneos seus. Escreveu 22 canções, gravou 13 compactos e oito LPs em sete anos de carreira. Suas canções românticas poderiam ter sido alvo dos bossa-novistas. Mas ela escapou do estigma de ultrapassada. A eclosão do movimento do banquinho e o violão ocorreu quando o estilo praticdo por Dolores estava no ápice. A Bossa Nova despontou em 1958 com a aparição do cantor e violonista João Gilberto. O novo modo de interpretar samba arregimentou gerações de jovens que se empenharam em fazer canções maravilhosas e renovadoras, inspiradas no jazz e no canto sem vibratos nem dramas de Mário Reis. Era preciso encontrar uma bête noire: o samba-canção. Os bossa-novistas satanizaram esse gênero como uma diferença a ser banida de suas canções. Afinal, o samba-canção em moda na passagem dos anos 40 para os 50 trazia um catálogo de frustrações amorosas e de motivos abolerados que remetiam a uma vida noturna acanhada e provinciana de Copacabana. Tudo o que os garotos dourados de Ipanema queriam esquecer, muito embora todos tenham bebido da fonte da então chamada “dord-de-cotovelo”. Dolores Duran reunia credenciais para cair em desgraça diante da geração emergente. Sua turma era outra. Ainda por cima, ostentava então o título de Rainha do Samba-Canção. Em 1959, enquanto os universitários da bossa faziam festivais com canto cool, Dolores cantava até forrós em parceria com o comediante Chico Anysio. Como então conseguiu driblar o choque dos tempos?
Talvez ela não tenha driblado nada e sua morte súbita, despertado a compaixão e o respeito dos rivais – e a tendência de colocar o artista morto muito jovem em um pedestal. Sua glória cresceu postumamente. Houvesse vivido mais, ela poderia ter se colocado à margem do movimento e criticá-lo, ou mesmo se associado à música moderna, como o fez Maysa em 1961 ao gravar o LP O Barquinho. Maysa era uma cantora de características semelhantes a Dolores. É fácil imaginar Dolores gravando em 1960 a bossa “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes – porque Dolores nunca registrou bossas da turminha. Mesmo assim, deixou gravado uma sessão de ensaio feita para a rádio Tupi em meados de 1959, quando entoou Chega de Saudade em duo com a amiga Mariza, mais tarde apelidada de Gata Mansa. Nesta gravação, conservada pelo radialista Walter Silva, Dolores canta baixinho, feito aquelas meninas que franqueavam os apartamentos para as jam sessions dos novos músicos, como Astrud Gilberto e Nara Leão. Esse, porém, não era Dolores no seu elemento. Ela esbanjava os tão odiados vibratos e o tema recorrente de suas composições era o amor dolorido e impossível. Nada a ver com o otimismo da bossa.
Amargo realismo de berço? Dolores não nasceu Dolores. Este foi o nome resultante de uma afirmação artística, quando, aos 16 anos, ela começou a trabalhar na boate Vogue, em Copacabana, e era moda a música latina. Dolores Duran soa como apelido de cantora latina de repertório internacional. E era o que Dolores mostrava em seus shows de boate, pois, desde pequena, mostrou facilidade para cantar em diversas línguas. Dolores nasceu Adiléia da Silva Rocha em 7 de junho de 1930 na rua do Propósito, na Saúde, área modesta do Rio de Janeiro. Foi a terceira dos quatro filhos do casal Armindo José da Rocha e Josefa Silva da Rocha. Como conta o pesquisador Ricardo Cravo Albin, ela sofreu desde criana de um reumatismo, que acabou deixando sequelas em seu sistema cardíaco, fato que a veio prejudicar na idade adulta. A mãe, dona de casa. O pai, um rigoroso sargento da Marinha, não a impediu de se apresentar, a partir dos 5 anos, em teatro infantil e programas de calouros. Com 10 anos, fantasiada de mexicana, ela cantou “Vereda Tropical”, em inglês e português, no programa de rádio Calouros em Desfilo, de Ary Barroso. Adiléia ganhou 500 mil réis, o primeiro lugar e o direito de participar de todo tipo de programa de rádio, como artista infantil. O pai aplaudia. Mas talvez o sargento Armindo se opusesse à carreira na noite, caso não tivesse morrido quando Adiléia tinha 12 anos, e precisou sair para trabalhar e ajudar no orçamento da família.
Com 16 anos, em 1946, venceu o concurso À Procura de uma cantora de boleros, no programa de rádio de Renato Murce. Isso lhe valeu um contrato como crooner na sofisticada boate Vogue, em Copacabana. Para trabalhar, teve de falsificar a carteira de identidade porque era menor. O repertório era variado, o gosto em meados dea década de 40 era pelo bolero e Adiléia dotou seu nome artístico. O radialita César de Alencar ouviu-a e a contratou para o casting da Rádio Nacional, para cantar música internacional. Era a mesma situação de outra cantora, Julie Joy, com quem Dolores passou a dividir um pequeno apartamento em Copacabana. Julie Joy relembra os primeiros passos da amiga: “A gente não tinha grana e costurava os vestidos para se apresentar nas rádios e nas boates. Dolores era louquinha, louquinha. Gostava de tomar de manhã uma xícara das grandes de café preto. Isso fazia mal ao seu coração.”
O público passou a ver nela uma tradutora de suas inquietações. Ela se tornava uma espécie de contrafação feminina e musical das crônicas sentimentais de Antônio Maria, como bem observou o cronista Paulo Mendes Campos. “Os dois gostavam de viver mais de noite do que de dia, os dois faziam canções, os dois precisavam de amor pra respirar, e mesmo na hora da morte, os dois foram atingidos por um só inimigo: o coração”.
O coração foi inimigo e a bússola de sua carreira. Ela se destacava pela expressão emotiva. Em 1952, gravou seu primeiro disco, para o carnaval do ano seguinte, com dois sambas: “Que bom será” (Alice Chaves, Silavdor Miceli e Pauo Marques) e “Já não interessa” (Domício Costa-Roberto Faissal). Em 1953, vieram gravações do gênero da moda, o samba-canção. Foi então que gravou “Outono” (Billy Blanco) e “Lama”, de Paulo Marques e Ailce Chaves. A fama como cantora aconteceu em 1953. Nessa época, gravou para a Copacabana os primeiros sucesos, como ‘Canção da Volta’ de Ismael Netto e Antônio Maria. Por essa época, a Vogue havia se convertido em local de peregrinação dos jovens que viriam a fundar a Bossa Nova anos mais tarde. Eles iam à minúscula casa noturna ouvir Dolores e Johnny Alf, pianista, cantor e fundador de um novo gênero, que denominou samba-jazz. Dolores introduziu em seus shows (assim começaram a ser chamadas as apresentações) o scat-singing do jazz, que encantava os jovens, como a futura cantora Leny Andrade. Gordinha e com os olhos puxados e brilhantes, ela fazia um tipo simpático, aparentemente alegre, sempre sorridente. Imagens dela podem ser vistas no YouTube, em participações que fez nos filmes musicais em moda nos aos 50.
Nas boates de Copacabana que Dolores freqüentou, ela não inovou apenas na interpretação. No comportamento também. Em apenas sete anos de trajetória profissional, Dolores ajudou a construir um novo modelo de comportamento feminino. Nas grandes cidades do Brasil, a mulher começava a se libertar das amarras da tradição e dos tabus, passava a morar sozinha. O bairro de Copacabana, com suas boates e a vida noturna intensa, tornou-se o palco dessa grande transformação social da mulher.
Dolores fez questão de manter a sua vontade no amor, ese apaixonava por mulheres e homens. Em 1955, durante a gravação da música “Pra que falar de mim”, samba de Ismael Neto e do radioator Macedo Neto, apaixonou-se por este, casou-se, adotou uma menina e tentou levar uma vida doméstica. Não conseguiu. A aventura a chamava. Três anos depois, já separada, namorou o compositor e pianista João Donato, mais novo que ela. E compôs para a Marisa Gata Mansa o samba-canção “Por causa de você”. A música é de Tom Jobim, que ela tinha ouvido numa sessão de rádio, com versos de Vinicius de Moraes. Dolores apresentou uma nova letra, para a aprovação de Tom, que a aprovou, não sem consultar o poetinha. A letra carrega nos sentimentos, de tal forma que parece um tanto exagerados para os padrões de hoje:
“Olhe, meu bem
Nunca mais nos deixe, por favor
Somos a vida, o sonho
Nós somos o amor
Entre, meu bem, por favor
Não deixe o mundo mau
Lhe levar outra vez
Me abrace simplesmente
Não fale, não lembre
Não chore, meu bem.
Dolores era a tradutora dos sentimentos e inquietações de uma época que começava a se dar conta de que as convenções sociais eram opressoras da criatividade, e do papel ativo da mulher. Viveu com sua filha em um quarto-e-sala em Copacana. Ela se apresentou pela última vez no Little Club, na noite de 23 de outubro de 1959. Depois do show, foi com amigos para uma festa do Clube da Aeronáutica. E deu mais uma esticada no Kit Clube. hegou ao apartamento às 7 da manhã de 24 de outubro. Antes de se recolher no quarto, avisou a empregada: “Não me acorde. Estou muito cansada. Vou dormir até morrer”. Foi encontrada morta naquela noite. Vítima de um ataque cardíaco.
A carga emotiva chamou atenção de seu símile cronista, Antônio Maria, que contou como a conheceu numa crônica publicada um dia depois da morte de Dolores: “Vi-a, pela primeira vez, no Vogue. Cantava escondidinha, fora de luz, atrás do saxofonista. Quase não se lhe via o rosto. Faz muito tempo.Mais tarde, fizemo-nos amigos. Com Ismael Neto, andávamos constantemente juntos. Estava presente, quando fizemos algumas cançõs, "Canção da volta", por exemplo, de que foi a primeira intérprete. Hoje em dia, lembrava-se de canções, minhas e de Ismael, das quais não me lembro. Só ela se lembrava. Prometia sempre um encontro (ummaestro presente), para escrevermos essas músicas, que Ismael não teve tempo de escrever. Uma delas chama-se "Dez noites". Essas músicas não serão conhecidas nunca mais. Poucas vezes passou pela música popular uma mulher de tanta sensibilidade. Seu coração era um coração repleto de amor. Nunca a vi que não dissesse estar apaixonada. Não dizia por quem”.
Sim, porque Dolores não devia satisfação a ninguém. Era a nova mulher, que desabrocharia na década seguinte. Uma cidadã que desejava, mais do que tudo, brilhar com seu canto emocional. Viva, fez sucesso como cantora de circos, televisão e sobretudo de boates. Ao morrer, a fama de compositra dessa rainha da noite se fez ouvir, quase apagando a fama da intérprete. Mas cantores sempre são compositores. Interpretar é compor. E Dolores compunha como se cantasse. A composição que brilhou na tragédia-espetáculo da jovem que morre aos 29 anos foi A Noite de Meu Bem, que ela gravou em 1959, dias antes de morrer, dedicada a uma nova paixão não revelado. O disco foi lançado duas semanas depois do seu enterro. E nunca mais parou de tocar.
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